Biblicamente, o coração é centro das decisões do homem e traduz o seu interior. É a sede das faculdades e da personalidade, de onde nascem pensamentos e sentimentos, palavras, decisões, ações. Deus o conhece profundamente e é, em seu coração, que o homem procura a Deus, que o ouve, faz uma experiência, que o serve e o ama¹.
O coração reto, simples, puro é aquele que não está dividido por nenhuma reserva ou segunda intenção ou em segunda aparência em relação a Deus e às outras pessoas.
Ao perguntarem a Jesus qual seria o maior mandamento da Lei, respondeu: “Amar ao Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito” (Mt 22,37) e continuou dizendo, que o segundo maior mandamento era semelhante e consistia em amar o teu próximo como a ti mesmo (Mt 22,39).
Esse foi o novo mandamento que Jesus nos deixou e nos apresenta os dois preceitos do amor de Deus. Entender essa nova visão, significou deixar muitas leis e um mero cumprimento de regras para dar um passo na aproximação do verdadeiro desejo de Deus: trabalhar o ser para ser e não para aparecer.
O novo mandamento foi plenamente entendido, absorvido e vivido por Main que, desde criança, com seu coração desejoso do transcendente, com os limites psicológicos e físicos de sua pouca idade, já demonstrava preocupação na vivência de um amor que vem do alto.
Em sua vida, podemos observar seu amadurecimento na forma de amar, contextualizado de diferentes formas, na presença e na ausência de Deus, nos momentos de sofrimento, de provações e alegrias.
Itinerário espiritual como Sinfonia composta por Deus
“Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor… Seria tratado com desprezo”. (Ct 8, 7b)
O que observamos na vida de Madre Mazzarello é uma sapiência genuína que, com a ajuda das mediações humanas e sua abertura ao Espírito, pode manter juntos o vazio, a plenitude, a presença e a ausência. Moldando assim, seu coração para ser todo de Deus.
Em sua obra ontológica, intitulada “Sobre a vontade na natureza” (1986), o filósofo alemão Schopenhauer, afirma que a música é a arte que melhor consegue expressar verdadeiramente o ciclo da vida e seus itinerários. Para ele, a sinfonia é o grande arquétipo dessa metáfora, pois, precisa-se de uma partitura escrita com pausas, diferentes figuras e notas musicais, escrita de forma personalizada para cada instrumento, e, por conseguinte, de instrumentistas.
Atenção, disciplina e olhar fixo naquele que comanda, o maestro, também são necessários. Só assim, uma sinfonia pode ser executada e apreciada. Caso contrário, ela simplesmente está no papel e na mente do compositor. Uma sinfonia só é sinfonia quando pode ser executada no pulsar do coração de cada participante.
Main percebeu, o quanto a vida é uma sinfonia escrita de forma personalizada por Deus para cada um de nós. Por isso, foi se deixando dedilhar, como um instrumento de cordas, por cada mediação enviada por Deus.
Mulher não acomodada e sempre em busca de seu autoconhecimento foi aberta, sensível, sobretudo, a si mesma. Conhecia suas qualidades, potencialidades e igualmente, seus defeitos, mas nunca se entregou ao desânimo.
Mas, também foi instrumentista de sua história, pois, ao ponto que compreendia os desígnios de Deus, sabia que necessitava trabalhar-se interiormente, com “determinada determinação”² (DÁvila, 2006), para executar com brilhantismo a partitura que foi escrita como sendo seu caminho personalizado de santidade. A verdadeira sinfonia de sua vida.
Desde muito nova, percebia em seu coração a força de um amor sem medidas. Podemos nos arriscar a dizer que, na sua simplicidade infantil, já intuía que se Deus é único e Trino, vivia em um amor circulante, transbordante e eterno, ou seja, amava em comunhão. Isso, significa que Pai, Filho e Espírito Santo, amavam-se mutuamente, e, nós, devemos imitá-los, amando a todos como a nós mesmos.
O diálogo com seu pai, por volta dos 6 anos de idade, denota sua abertura às questões do transcendente e tendência à busca ao que só se vê e se entende por meio da fé. Quando perguntou-lhe: “Papai, e o que fazia Deus antes de criar o mundo? ”O pai responde: “Amava-se a si mesmo, adorava a si mesmo e contemplava-se a si mesmo… A sábia resposta do pai, homem aberto também ele a Deus, imergiu-a no mistério da Trindade. (Moreira, 2019). Esse foi o início de seu itinerário espiritual.
Podemos perceber a profundidade mística e teológica de Main que, no concreto da vida, aprofundava suas percepções e convicções de fé, trabalhando na vinha junto de seu pai, ajudando sua mãe nos deveres da casa, no cuidado com os irmãos, ensinando-os a rezar, ajudando a direcionar seus olhares e corações para Jesus.
Da pequena janela da Valponasca, indica às suas irmãs, a igreja: “Jesus é o Sacramento. Quando não podemos ir pessoalmente, devemos ir até lá com o pensamento “(Maccono I 53). Seu amor por Jesus era manifestado por meio de seus, gestos, palavras e ações. Dizia: “…quando você passar em frente à igreja e não puder entrar, envie pelo menos uma saudação a Jesus, fazendo a comunhão espiritual” (Maccono II 153).
Coração de um único dono
“Como és bela minha amada,
como és bela! Teus olhos são pombas.
Como és belo meu amado, e que doçura!”.
(Ct1, 15-16)
Na vida de Madre Mazzarello, o amor a Deus e ao próximo se fazia presente no concreto da vida cotidiana, de forma espontânea, comunicativa, delicada, na simplicidade, na firmeza, na oração e no trabalho. Não devemos nos equivocar em achar que seja um amor efêmero, pelo contrário, sua vida foi ramo da verdadeira videira e, por isso, mantinha sempre os olhos fixos em seu verdadeiro Maestro.
Lendo suas cartas, encontramos um testamento espiritual que muito nos revela sua vida interior, a força, o vigor e profundidade de sua fé. Penetramos em seu santuário mais íntimo e assim podemos ter pistas para compreender sua entrega total a Deus. Ao ler suas cartas, percebemos, indiscutivelmente, que Jesus, não ocupava apenas o centro de seu coração, mas, era o único dono por excelência.
Como toda mulher que possui um coração enamorado, seu desejo era estar sempre com seu Amado, fazendo-lhe companhia. Para ela, “quão maravilhoso seria se pudéssemos estar sempre perto de Jesus! Se você pudesse costurar na igreja, no último balcão, para fazer-lhe companhia! Pelo menos o veríamos o mais rápido que pudéssemos “(Cr I, 123) Em sua simplicidade, sabia que quem ama tem pressa de ver e de estar com o amado.
Literalmente apaixonada pela Eucaristia, ela fez da celebração eucarística o coração do seu dia, e, incentivava todas a irem ao encontro de Jesus Eucarístico com o mesmo fervor, pois, “gostaria que sempre lembrassem de ir e receber Jesus com alguma oferta da própria vontade, pois, se Ele se entrega inteiramente a nós, é certo que também devemos lhe oferecemos algo “(Maccono II 85).
Para ela, Jesus era o Esposo que receberia no céu àquelas que fossem boas religiosas, igualmente, como um esposo recebe sua esposa (C 40.3). Era o amante, o amado e, por isso, encorajava às Irmãs a corresponder esse amor tentando “aprender a amar o Senhor” (C 23,6). Dizia com entusiasmo: “Somos e queremos ser todas as esposas de Jesus” (Cron III 192).
Ele é o confidente, o consolador, quem tudo pensa e faz. Seu amor é traduzido em confiança inabalável ao Esposo. Com os duros golpes da vida aprendeu que Jesus deveria ser toda a sua força, pois com Ele, “os pesos tornam-se leves, os trabalhos sossegam, os espinhos se convertem em doçuras” (C 22,21).
Na certeza de que pertencia ao seu Amado e Ele era dela aconselhava “não compartilhe seu coração com ninguém, seja inteiro para Jesus “(C 65,3). Somente nessa dinâmica gratuita de amar é que os problemas podem ser resolvidos.
O coração de Jesus era seu lar habitual: “Estou no coração de Jesus” (C 19,3; C 22,21). Era o ponto de encontro privilegiado: “eles vão lhe procurar todos os dias no coração de Jesus; tenha cuidado para se deixar encontrar lá “(C 13,1).
Para ela, o coração de Jesus era o lugar da unidade, da oração mútua e da constante possibilidade de diálogo que diminui e elimina as distâncias: “muitas vezes entrem no coração de Jesus, eu também entrarei nele e, com frequência, conseguiremos nos encontrar e nos dizer muitas coisas” (C 17,2).
Maestrina de Sinfonias
“Meu amado é meu e eu sou dele”. (Ct2,16)
Tal confiança, levou-a de instrumentista de sua vida à maestrina espiritual de muitas sinfonias, pois, mostrava às Irmãs e às jovens, sobretudo, por meio de seu próprio testemunho, o caminho para chegar a ter um coração totalmente enamorado por Jesus.
Como uma boa mestra, ensinava que era necessário ter: “… grande confiança em Jesus e Maria, e acreditar sempre, que, sem Ele, não é capaz de outra coisa a não ser, cometer erros (C 64,1). Por isso, “ confie nEle e espere tudo Dele”. Coragem, quando estiver cansada e aflita, vá e coloque seus problemas no coração de Jesus, e ali encontrará alívio e consolo “(C 65,1,3).
Seu amor era confiante, alegre e vivaz e, é esse o ensinamento que transmitia a todos: “Confie em Jesus, coloque todos os seus problemas no coração dele, deixe-o fazer, ele consertará tudo” (C 25,3). Somente, “ele a ajudará vencer, dando-lhe graça e força para lutar e a consolará” (C 57,2).
Ao longo de sua vida, ensinou continuamente que o nosso coração é feito apenas para amar o Senhor (C 63.4), e, somente Ele pode nos satisfazer plenamente, nos fazer verdadeiramente felizes (Maccono I 128; II 164). Afirmava quão grande consolo é termos um coração para amar o Senhor e poder demonstrar nosso amor sofrendo as dores da vida de boa vontade e pacientemente (Cron II 112).
Dessa forma, animava, ensinava e regia a vida de suas Irmãs e das jovens que lhes foram confiadas. Hoje, ao consultarmos suas cartas, aprendemos com Madre Mazzarello, a orientar o nosso coração inteiramente a Deus.
Cada Filha de Maria Auxiliadora é uma instrumentista sendo regida pela grande maestrina espiritual. Nossa fidelidade às Constituições, consiste, também, em termos os olhos fixos nos ensinamentos de nossa mãe espiritual. Não ofusquemos o som de seu pedido que ressoa em nós e, que é base de nossa consagração: “Vamos amá-lo, vamos amar a Jesus!” (C 58, 9).
Por Ir. Celene Couto – Revista em Família nº57